
Projeto Educativo em missão humanitária
O medo de expressão, como projeto educativo
Planear e projetar são formas de estruturar as ideias para que se consigam ser postas em prática de forma eficaz e contextualizadas. É este um dos papéis do projeto educativo, qualquer que seja a sua dimensão, ao nível de escola, turma ou outro grupo de ação.
Como técnica superior de educação e formação, na área da pedagogia social, tive oportunidade de colocar em prática o projeto que abaixo transcrevo apenas parte. Esta oportunidade surgiu no âmbito da unidade curricular (UC) de Animação e Expressões Artísticas da Licenciatura em Educação – Minor em Pedagogia Social e da Formação da Universidade Aberta.
Contexto educacional
Escolinha D. Luís Gonzaga, escola Anexa à Escola Primária Completa de Sanjala, 2ª classe do ensino primário (1ºciclo).
Contexto cultural
Escola inserida no bairro de Sanjala, da cidade de Lichinga, província do Niassa, país Moçambique.
A maioria dos alunos tem o português como língua materna, mas alguns falam macua e jaua com as suas famílias. O sentimento de receio e vergonha é predominante por não falarem a língua portuguesa correctamente. Talvez (com base em alguns depoimentos) pela história de guerra e massacre, o povo tem receio de exprimir a sua opinião. São muito recolhidos nos seus pensamentos e só falam mais abertamente quando estão sozinhos com os seus. A maioria não tem capacidade financeira para alimentar diariamente todos os membros da família, nem comprar roupa e material escolar. Vivem à base de ajudas, mas sobrevivem quando as ajudas não chegam.
População-alvo
Turma com 37 alunos de idades entre os 6 e os 11 anos, a frequentar a 2ª Classe. Os alunos de 6 anos entraram para a 1ª classe nesta escola com 5 anos, pois aqui a lei prevê que quem fizer 6 anos até Dezembro deve frequentar a 1ª Classe. Os alunos com idades superiores a 8 anos são alunos retidos, ou que foram transferidos da escola oficial, pois não aprendiam a ler e escrever. Alguns foram transferidos da 5ª classe para a 2ª.
Problema educativo
Um dos problemas educativos que detectei no início do meu contacto com estes alunos foi a capacidade de expressão pouco desenvolvida. Como primeiro desenho pedi para fazerem o seu retrato, mas os alunos desenharam casas e carros, só. Quando pedia para falarem de algum aspecto do seu dia-a-dia ou outro tipo de perguntas, poucos (1 ou 2) eram os que conseguiam construir uma frase que demonstrasse um raciocínio lógico e expressivo.
Estratégia de intervenção
Face ao exposto, optei por planificar as aulas tendo em conta actividades que desenvolvessem a capacidade de expressão, quer seja drama, dança, música, plástica, poético-literária. Assim, e como o programa nacional de Moçambique contempla algumas disciplinas adequadas a isso, fizemos o seguinte horário:
2ª Feira | 3ª Feira | 4ª Feira | 5ª Feira |
Educação Visual | Educação Musical | Educação Física | Ofícios |
Estas aulas estão ligadas ao tema a trabalhar em Língua Portuguesa e em Matemática, para construir uma prática pedagógica baseada na transdisciplinaridade e assim dar oportunidade para que cada aluno se exprima de diferentes formas para encontrar a sua própria expressão.
Os objectivos desta intervenção são o desenvolvimento da capacidade de expressão, reduzir o medo de errar e ir ao encontro dos 4 pilares da educação.
Com esta diversidade de atividades os alunos são levados a despertar todos os seus sentidos e entrar em contacto com experiências diferentes, envolvendo-se e aprendendo com a experiência.
Meios e instrumentos
Em Educação Visual foram levados a desenhar e pintar, utilizando material de pintura diverso (lápis de cor, lápis de cera, guache, aquarela, marcador, giz), individualmente, em pares e em grande grupo (pintura coletiva).
Em Educação Musical inicialmente tiveram oportunidade de cantar músicas que já sabiam. Depois introduzimos músicas novas, com gestos, batimentos corporais e gradualmente fomos introduzindo os instrumentos musicais locais.
Em Educação Física, para além dos jogos diversos, desenvolvemos atividades de mímica e repetições.
Em Ofícios foram propostas atividades de corte e colagem, dobragens, modelagem em barro e plasticina, e o plantio.
Avaliação do projeto educativo
Ao longo das atividades foi evidente a evolução dos alunos. Aos desenhos já acrescentam texto escrito, pois a sua intenção com o desenho passou a ser de exprimir algo que para alguns não fica completo apenas com o desenho em si.
Adotei a prática diária de escrever sobre aspectos relevantes que aconteceram nas aulas, género diário de bordo, o que me facilita imenso nas avaliações sumativas.
As expressões têm um papel importante para o desenvolvimento destas crianças, pois algumas passaram da atitude de não querer exprimir-se para o pedido de desenho ou redação sobre o que falámos ou visitamos. Com a valorização das suas obras, o erro deixou de ser visto como algo a penalizar, passando a ser visto como um momento de aprendizagem, algo a aperfeiçoar numa próxima (e tão desejada) vez.
As relações do modelo de Relação Pedagógica de Legendre (1993) foram realçadas, pois o sujeito está totalmente envolvido com o objeto (relação de aprendizagem), o sujeito e o agente fazem parte da mesma equipa de trabalho (relação de ensino), o agente debruçou-se e empenhou-se em conhecer e envolver-se com o objeto (relação didáctica).
Posso dizer que, sendo esta cultura completamente desconhecida para mim, como agente tentei envolver-me de corpo e alma em todo o contexto, para conseguir criar a empatia necessária com os alunos, de modo a que conseguíssemos estabelecer uma relação pedagógica rica em aprendizagens significativas.
A aplicação deste projeto educativo foi tão rica que tanto os alunos, que adquiriram novos conhecimentos sobre os conteúdos do programa e também sobre o mundo fora de Lichinga, como a minha auxiliar, que aperfeiçoou a sua prática pedagógica e criou comigo laços de amizade, como eu, que aprendi muitos aspectos desta cultura tão diferente, criámos uma ligação suficiente para que a memória guarde estas recordações, mais do que qualquer fotografia possa transmitir.
Técnica Superior de Educação e Formação